O crescimento do militarismo nas instituições públicas coloca a democracia em risco
Por: Oséias Francisco da Silva
O Estado Democrático de Direito instituído pela constituição cidadã de 1988 deveria representar a ruptura definitiva não apenas com a ditadura militar, aparentemente superada, mas com todas as possibilidades de a história se repetir novamente. Para se entender o significado mais profundo desta preocupação é necessário compreender o militarismo enquanto ideologia de dominação. O militarismo foi um projeto de poder de Estado para o controle radical da sociedade civil em uma época em que o capitalismo se sentia ameaçado pelo comunismo no mundo todo.
O golpe militar de 1964 foi a estratégia da classe dominante nacional que temendo perder o controle do país impôs à nação, auxiliada (ou forçada) pelo imperialismo norte-americano, a traumática experiência da ditadura militar, cujo governo pautou-se pela centralização do poder e pela extrema violência (física e não física) no controle social, por meio da perseguição, mortes e desaparecimentos de esquerdistas e daqueles que eram contra o regime, além da rígida censura e outros controles.
O militarismo, até então, poderia ser conceituado simplesmente como uma crença de que a melhor forma de governo para uma nação é aquela baseada no sistema e cultura militar, em outras palavras, uma doutrina que defende a prevalência militar em um governo nacional, visto que a segurança é tida pelos militaristas como o objetivo mais importante de suas ações. Sendo assim, o golpe de 1964, nessa concepção, justificava-se diante da necessária segurança nacional que estaria ameaçada por inimigos internos. Porém, hoje essa concepção de militarismo pode ser aplicada de forma mais ampla, ou seja, já não é restrita apenas à idéia de poder de Estado, mas também à aplicação de seus princípios a qualquer organização da vida privada ou a qualquer instituição pública, como temos visto em muitos segmentos privados e públicos no Brasil contemporâneo.
É perceptível a relação paradoxal insustentável na convivência de duas idéias, ou dois projetos radicalmente antagônicos: Militarismo e Estado Democrático de Direito. A afirmação de um anula o outro, ou seja, a consolidação da democracia nega o militarismo, e por sua vez quando o militarismo se afirma a democracia não sobrevive, ou não é plena. Um Estado democrático de direito tem como finalidade construir as condições necessárias à cidadania - o fim é o cidadão, enquanto que no militarismo o fim é o próprio Estado.
É uma contradição um Estado que se pretende democrático não democratizar as relações da sociedade com as instituições estatais, por exemplo, a constituição de 1988 em seu artigo 144 mantém as Polícias Militares como forças auxiliares e reserva do Exército, tal como foram reorganizadas em 1969 por meio do Decreto-lei 667/69 e, com isso, eliminou qualquer chance do controle social sobre essas instituições.
Como o Brasil e os brasileiros perderam a oportunidade histórica de enterrar definitivamente o militarismo com a nova Constituição, porque fez concessões, o preço está sendo alto, pois o militarismo continua vivo e crescendo e seu crescimento é um grande obstáculo à democracia. E isso está ocorrendo às sombras dos acordos políticos em nome da garantia da governabilidade. Recentemente houve uma resolução da ONU (Organização das Nações Unidas) recomendado ao Brasil que acabasse definitivamente com as Polícias Militares, o que lamentavelmente não foi aceito em razão da forte influência do militarismo dentro do Estado brasileiro. Ficamos a cada dia mais submissos ao militarismo, este é o preço das concessões.
Uma das estratégias da democracia para construir um novo modelo de segurança pública desmilitarizada é, sem duvida nenhuma, a permissão constitucional aos municípios para criação de suas Guardas Civis, porque estas representam uma nova concepção de segurança; apresentam uma nova estética e prática operacional; além de se pautarem pelas relações humanas. Os Militares ao perceberem essa estratégia da democracia imediatamente construíram outra estratégia: Controlar as Guardas Civis Municipais a todo custo, seja comandando diretamente ou indiretamente, ou impedindo seu crescimento.
Com o avanço das lutas e conquistas dos movimentos sociais e populares, nacionais e internacionais, o Estado brasileiro tem se esforçado para aprofundar e acelerar o processo de democratização, e nesse sentido tem construído alguns mecanismos de participação popular. E como resultado dessas parcerias houve a primeira Conferência Nacional de Segurança Pública realizada em 2009 que foi um marco fundamental desse processo. Dentre as muitas conquistas e avanços decorrentes dessa conferência destacamos a DESMILITARIZAÇÃO da segurança pública como uma importante diretriz para orientar a política nacional de segurança. Somando com essa conquista social, o Governo Federal, mais especificamente a partir da criação do PRONASCI (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania) em 2003, tem instituído e implementado vários projetos que compõem um modelo de segurança pública desmilitarizada, privilegiando os Municípios e incentivando-os a criar Guardas Civis ou a fortalecer as já existentes.
Na contramão desse avanço social e do Estado democrático vem o crescimento do militarismo que estende seus tentáculos nas instituições públicas, desde as guardas civis, passando pelas secretarias de segurança urbanas e até as subprefeituras como aconteceu na Capital do Estado de São Paulo. Nos últimos anos em diversas Guardas Civis Municipais do Brasil os militares vêm perdendo espaço para novos comandantes civis e da própria carreira da instituição, em contrapartida estão assumindo e aumentando o comando das secretarias municipais de segurança. Na região do ABCDMR esse fenômeno está constatado, o militarismo está estendendo controle e se afirmando dentro das estruturas do Estado democrático, ao mesmo tempo e silenciosamente, impedindo a afirmação democrática.
O avanço do militarismo em nossa sociedade é um retrocesso histórico que atenta contra todas as conquistas sociais e populares que motivaram e sustentam a democratização do Brasil. Mesmo que alguns apologistas do militarismo argumentem que se trata de ex-integrantes (Coronel, tenente, capitão etc) de corporações militares, a refutação é simples: Por força da lei vinculam-se ao sistema militar os que estão em atividade e os que estão na reserva (aposentados), onde a relação de hierarquia é mantida e é por essa razão que eles carregam o posto ou a graduação para a vida toda. Assim, negar o militarismo é afirmar a democracia e fortalecer a cidadania. Não se trata da pessoalidade do militar, sequer questionamos sua condição de comandar, mas rejeitamos o sistema que ele representa e serve ao reproduzi-lo ideologicamente e concretamente.
Precisamos afirmar nossa democracia como um valor inegociável e criar as condições objetivas e subjetivas para continuar avançando na inclusão social, no respeito à coisa pública, no reconhecimento e proteção dos direitos humanos, na cidadania, e na segurança pública cidadã cuja missão seja garantir o exercício e gozo dos direitos individuais e coletivos. Dessa forma, fortalecer as Guardas Civis Municipais como instituições estratégicas na construção de um novo modelo de segurança, é contribuir para, também, se construir um novo modelo de sociedade, mas para isso não podemos permitir a reprodução das velhas idéias que já mostraram historicamente o quanto podem paralisar as forças criativas desta nação brasileira.
* Giovani Chagas é presidente do sindicato dos servidores públicos de São Bernardo do Campo e Guarda Civil Municipal.
Enviado por:
Oséias Francisco da Silva
Especialista e Consultor em Segurança Pública
Pós Graduado em Gestão de Segurança Pública
Pós Graduado em Gestão de Pessoas e Políticas Públicas
Filósofo
Psicanalista
Escritor
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